A Tua Vontade é a Tua Vitória

3.11.11

Tempos de Guerra

O nosso quartel situava-se numa zona perto da fronteira com o ‘Congo Kinshasa’. Uma zona onde nunca houve problemas de combate entre a nossa companhia e o inimigo, ao contrário do outro lado, em Miconge, esta fazendo fronteira com o Congo Brazzaville, que estava a ser sempre fustigada pela artilharia inimiga.

Quando não há motivos para precauções há tendência para facilitar. Não se tomam as providências necessárias em garantir a segurança e é ver-se situações que não podem acontecer em tempo de guerra.

A eletricidade do nosso quartel, era fornecida por geradores que também forneciam à aldeia próxima, Tando-Zinze. Como não havia gás para confecionar as refeições, era na floresta do Maiombe que íamos buscar lenha para alimentar a fogueira.

Organizava-se um grupo de soldados e, numa Berliet, lá se ia cortar a madeira necessária para abastecer o depósito de lenha. Tinha vindo dos ‘Comandos’, o rigor e disciplina era o nosso lema, não facilitar a nossa divisa. A qualquer momento podíamos ser atacados e tínhamos que estar preparados. Mas ali, na floresta do Maiombe, parecia que nada podia acontecer. Os soldados não tomavam as devidas precauções. Há que cortar e encher a Berliet com os toros de madeira para cima... das armas que ali tinham ficado.

Deixei-os encher. Quando vi que estava tudo na galhofa e prontos para seguirmos para o quartel apontei-lhes a minha G3 e disse: «Eu sou o inimigo, estão todos ‘mortos'». Olharam-me estupefactos. A minha arma estava em posição de rajada. Balbuciaram: - «Ó nosso furriel, deixe-se disso». Perguntei onde estavam as armas deles.

Claro que não foi necessário que mo dissessem. Estavam debaixo de dezenas de toros. E ali, em plena mata do Maiombe, perceberam a lição. Nunca na vida podemos facilitar, pois se em vez de mim fosse realmente o inimigo, estaríamos todos mortos.

As vezes seguintes que voltamos para apanhar lenha, enquanto uns cortavam, outros, em alerta e de G3 apontadas, montavam um perímetro de segurança prontos para qualquer eventualidade.

Na guerra, como na vida, nunca podemos colocar em perigo nem a nossa, nem a vida do nosso semelhante, porque o azar, de um momento para o outro, pode acontecer!

foto: a municiar um camarada no nosso campo de tiro, enquanto ele disparava com a HK21.

8.2.11

As Crianças... Porquê as crianças?!

Gostava de as ver. Brincavam como todas as crianças o sabem fazer. Com dois paus dentro de um pneu velho corriam pela aldeia e com que mestria o faziam. Os seus risos ecoavam por entre o arvoredo. Com visgo apanhavam os pássaros. A estrada era de terra, essa terra vermelha que tanto me fascinou. Nela, levantando nuvens de pó, jogavam com velhas bolas de trapos.

Muitos eram filhos de tropas que por lá passaram. Quase todos por lá ficaram. No regresso à terra de onde saíram, deixavam para trás sementes suas. Quando engravidavam as mulheres, estas eram quase sempre abandonadas à sua sorte. Os filhos nasciam nus e nus ficavam já que os pais não os reconheciam como tal. Novas companhias, novos filhos. A aldeia vivia do cultivo e da... tropa. A tropa era uma das suas formas de subsistência.

Sentava-me muitas vezes na cadeira defronte do meu quarto, olhava para aquelas copas de árvore que esventravam o céu, ouvindo o som dos papagaios cinzentos que atravessavam o espaço no alcance de alguma fêmea para mais uma ninhada de novos papagaios.

E, assim, se passava os dias!

Num dia igual a tantos outros, ouvimos gritos lancinantes vindos da aldeia. Os locais em peso deslocavam-se para o nosso quartel, quisemos saber o que se tinha passado. Foi um dia trágico para aquela aldeia. Um jeep Land Rover, de um grupo de técnicos agrícolas que estavam ao serviço do plano Calabube, que moravam numa casa junto ao posto de polícia, apinhada de crianças, tinha batido numa árvore, por excesso de velocidade, e as crianças tinham sido projectadas. Umas já estavam mortas, outras ainda com sinais de vida.

Fretados os Unimogs para os ir buscar, foram levadas para a nossa enfermaria. Ali assisti à morte de muitas delas. Começaram a inchar e, em desespero, vimos que nada podíamos fazer. Os enfermeiros afadigavam-se tentando por todos meios salvá-las mas, um a um, o peito deixava de arfar e a cabeça caía inerte. Rebentaram todas por dentro. Nunca mais me esqueci do que vi. Depois foi o enterrar daquelas pobres crianças. Uma aldeia em peso a chorar e eu fiz parte do grupo que representou o quartel na despedida. Era o mínimo que podia fazer por eles, por aquele povo que nunca esqueci, o povo de Cabinda.

... e, os meus olhos, naquela despedida, ficaram mar.


foto: Onde estão as escadas era a criptografia. Ao fundo, lado esquerdo, a enfermaria (aqui a nossa Companhia estava de saída)