A Tua Vontade é a Tua Vitória

14.10.19

Parada dos Comandos - Sintra

Hoje em Sintra havia uma parada de boas-vindas aos Comandos que regressaram a Portugal em setembro, depois de cumprirem a missão de seis meses das Nações Unidas na República Centro-Africana (RCA).

Tive a oportunidade de falar com diversos Comandos presentes não na cerimónia, mas que assistiam a esta parada. Relembrei os 'velhos' tempos que estive no 27º Curso dos Comandos no Grafanil em Luanda e ficaram a saber que a boina que agora têm que é vermelha foi mudada de castanha para essa cor em 1974. Antes disso a boina era igual para todo o exército.

Depois sentei-me num banco numa exposição que lá está e lembrei-me de um ditador que existiu na Republica Centro Africana:Jean-Bédel Bokassa, também conhecido como Imperador Bokassa I (praticava o canibalismo), que num golpe de estado em 1966, tomou o poder na RCA, tornando-se presidente e depois imperador como o seu ídolo Napoleão Bonaparte.

Em 1979 mandou prender centenas de jovens estudantes quando estes se recusaram a comprar uniformes escolares feitos na empresa chefiada por uma das suas esposas. É reportado que Bokassa pessoalmente supervisionou o assassinato de pelo menos 100 estudantes pelas mãos da sua guarda imperial.

Mortes extrajudiciais, torturas, estupros e mutilações feitas por suas tropas eram o pão nosso de cada dia.

Foi deposto em setembro de 1979 e assim acabaram treze anos de terror.

Bokassa teve 17 esposas e mais de 50 filhos. Morreu vítima de ataque cardíaco.

Mas na RCA, como na maior parte do continente africano (lembrei-me agora de outro ditador - Idi Amin), a 'paz' está na ponta das espingardas. Por isso esta companhia de Comandos foi substituída por uma outra mas de paraquedistas, que irão cumprir mais seis meses de missão por estas paragens.

Sentei-me, mas como Marius o Romano nunca teve jeito para imperador, ali ficou o lugar à espera que outro ali se sentasse e se sentisse imperador... do sítio do pica pau amarelo.

"Mama Sumae" para todos os Comandos.

21.8.19

Museu dos Combatentes - Forte do Bom Sucesso

O Monumento - Objectivos (este é um deles)

1 - Cumprir um acto de justiça, de homenagem àqueles que, como Combatentes, serviram Portugal no ex-Ultramar português.

Sabia da sua existência, mas não sabia onde estava situado.

Na minha demanda por Belém, vi uma placa a assinalar o Museu. Tinha que o ver.

Fui confrontado com um belíssimo pórtico. Nas paredes do Museu, milhares de nomes dos que tinham tombado na guerra do Ultramar. Percorri os anos; 1963...1964... 1974. Era este ano que procurava.

Ali estava o nome dele na lista, Hélder Santos Lima - Furriel.

Fiquei comovido, as lágrimas assomaram, O Furriel Lima tinha sido meu instrutor nos Comandos. Morrera em Cabinda em 16Jun74 na zona de Caio Guembo, na deflagração de uma mina antipessoal. Deixara um filho ainda bebé.

Sentei-me e ali estive algum tempo recordando-o:

"Um dia todos em círculo, arma nas mãos com os braços estendidos, quem ganhasse teria o fim-de-semana garantido. E a arma que pesava cerca de 5kg com o carregador municiado começou a pesar “toneladas”. Um a um iam desistindo. Fiquei eu mais outro camarada. Os dois últimos, um iria a casa. O corpo todo torcido para trás, a tentar que os braços não descaíssem e o Furriel Lima talvez por eu ser Lima também diz-me: «Lima, tens que vencer».

E o meu camarada descai por fim os braços. Tinha ganho."

Levantei-me e, ainda com os olhos emudecidos, fui visitar o museu.

PS - Aqui não estão todas as fotos que tirei. É só uma pequena amostra. Este museu, para quem esteve a combater no Ultramar, é digno de se ver.


2.8.19

O paludismo

Na recruta, apanhávamos uma injeção que designávamos por 'injeção cavalar' (a vacina era injetada nas costas, junto à omoplata) que, por princípio, nos tornava imunes às doenças tropicais. Tomei-a na EAMA mas, como se veio a verificar, a injeção não era infalível. Uns dias no mato, com patrulhas a pé de cinco dias, a beber água dos charcos, e sabíamos bem que no interior do Maiombe os charcos ficavam ali semanas, propícios para as larvas dos mosquitos, e com tanta picadela, há sempre uma altura que o corpo cede.

Pouco tempo estava em Tando Zinze quando comecei a ter febre e, ao tomar banho na nossa messe de sargentos, o corpo começa a tremer. Sem saber o que era, tomo banho rapidamente e lençóis comigo. Era dia 3 de janeiro de 1974. Os suores continuavam e como com a idade de 22 anos não há andropausa, só podia ser uma coisa... Paludismo.

Era a 2ª vez que tinha. A primeira tinha sido como civil e estive uma semana de cama em Luanda (tive uma terceira vez que quase foi necessário chamar o helicóptero para ir para o Hospital de Cabinda, pois o meu estado de saúde estava muito agravado. Felizmente recuperei). O enfermeiro lá me deu uma injeção e 'violou-me' com dois supositórios. Nessa noite nem comi e foi uma noite terrível.

Estava eu na minha caminha (parece a guerra do Solnado), quando me acordaram pois tinha que ir no MVL para Cabinda onde iria fazer uma pequena cirurgia, devido a uma unha encravada dos tais jogos de bola. Como era habitual, nesse dia chovia e de que maneira. Mesmo com o impermeável a chuva entrou-me pelo corpo e se doente estava mais doente fiquei. Só que a cirurgia era no dia seguinte (sábado). Fico em casa de um conhecido onde tinha a minha roupa civil e, nessa tarde, deu-me para ir passear por Cabinda.

Volta o corpo a tremer, entro num bar e peço um copo de leite. O barman olha para mim e aquela cabeça deve ter-me chamado de 'copinho de leite'. "Onde já se viu um mancebo a pedir um copo de leite?! Uma cerveja sim, bem fresquinha... agora um copo de leite? Bah... já não há homens como dantes!"

Mais valia ter pedido a cerveja. Fico agoniado, quase que caio, os ouvidos a zumbir e não era das moscas, e uma névoa se forma nos meus olhos. Sento-me, cabeça entre as pernas e lá recuperei. Pago e cama comigo. Doía-me todo o corpo, febre altíssima. Tomo dois comprimidos, mas dormir nada.

No dia seguinte fico sem unha, dedo entrapado, mas mesmo a pé coxinho a cidade era para ser visitada pois terça-feira iria de novo para o mato e havia que aproveitar os dias.

Coisas do destino, nessa noite fui ao cinema Chiloango ver o filme "Hospital". Tal como Maomé, como não fui para o Hospital, veio o "Hospital" até mim.

Na manhã do dia seguinte, vou ver a chegada do Governador Fernando Santos e Castro que iria inaugurar as novas áreas operacionais do aeroporto e do porto da cidade.

Foi com um calor terrível que voltei para o aquartelamento em Tando Zinze, onde mais patrulhas de dias no mato, me esperavam.

foto: aqui na 3ª vez que estive com paludismo. Estava no início da doença que quase me levava de 'charola' para Cabinda.


autor: 2º sargento Maurício

31.7.19

A caminho de Tando Zinze

12 de dezembro de 1973

As chamas dos poços de petróleo no mar, iluminavam a cidade quando cheguei. A areia da praia era negra devido ao derrame que sempre havia desses poços. Cidade pequena, muito pacata, depois de certa hora não se via vivalma. Nesse dia fui até ao cinema Chiloango ver o filme "A última cruzada" (não confundir com "a Última cruzada" com o Indiana Jones de 1989). Pouco mais de uma dúzia de pessoas assistiam ao filme.

Duas da manhã. Enquanto me desloco para os meus aposentes no B.Caç.11, os camaradas que tinham vindo comigo na lancha "Alabarda", vão deambulando pela cidade em busca do calor da noite.

Dia 13, quinta-feira. Em MVL (Movimento Viaturas Logístico) vejo pela primeira vez, as árvores altivas, de grande porte, da floresta do Maiombe. Devido a fatores climáticos que a floresta provoca, a chuva era uma constante. Durante quatro dias choveu sempre. Tando Zinze era o quartel a que estava destinado a cumprir a minha comissão. Neste lugar ermo, com a aldeia Tchinguinguili por perto onde as mulheres trajavam os famosos panos de Cabinda, iria ficar durante um ano e alguns meses.

Enquanto não comecei a fazer patrulhas e numa de habituação ao novo local e aos camaradas, o jogar às cartas, ao dominó e à bola, era uma forma de passar o tempo, pois o que lá tínhamos a mais era tempo. Nunca tive um calendário. Se o tivesse iria passar o tempo a olhar para os dias e o importante ali, era esquecer o tempo.

foto: jogando dominó na nossa messe de sargentos

autor: 2º sargento Maurício

14.3.19

O Acidente

A noite estava escuríssima junto à fronteira com o Congo Kinshasa. Tínhamos sido alertados para um acidente com uma nossa viatura. Saímos do quartel e, com as cautelas devidas, seguimos em direção à fronteira para verificar o que tinha acontecido e se havia mortos ou feridos pois a informação era escassa. Chegados ao local verificámos que uma Berliet se tinha-se virado e, para além da nossa tropa, também levava civis. Caíram todos e tanta sorte houve que, felizmente, só um soldado tinha desmaiado ao bater com a cabeça no chão e uma criança com uma luxação no braço.

Mas o azar não ficou por aqui. O moço que tinha visto o acidente, tinha comunicado o caso à tropa na sua motorizada. Eu sabendo disso, levei-lhe um 'jerrycan' com gasolina para lhe oferecer por ter feito esse favor. Como a gasolina por ali era escassa o rapaz ficou todo satisfeito. Mas a satisfação transformou-se em tristeza. Devido a candeia estar muito perto da gasolina, logo esta se incendiou e a motorizada ficou numa lástima.

A esta distância, não posso precisar, e eu no que escrevi não adianto mais nada sobre o assunto, se a motorizada foi arranjada no nosso quartel e devolvida ao dono em condições.

Nessa mesma noite estava de serviço. A longa noite esperava por mim. Dentro em pouco, os geradores iriam desligar. O quartel e a povoação de Tando Zinze, ficariam às escuras.

A meu lado um dos cães iria fazer-me companhia e acompanhar-me na ronda pelo quartel.

Eu, o silêncio e as estrelas, num dia igual a tantos outros, ali, junto à floresta do Maiombe.

22-07-1974