A Tua Vontade é a Tua Vitória

27.8.20

Caio Guembo - 30 de maio de 1974

Estava em Tando-Zinze quando tive conhecimento deste ataque. A história que me contaram como o mesmo tinha ocorrido não corresponde à verdade dos factos. Como tal, e para que se conste como se passou, fiz diversas pesquisas e, com o auxílio de quem lá esteve presente, aqui fica para memórias futuras o rumo dos acontecimentos, dando na parte final os créditos devidos a quem me ajudou.

Das 05h20 às 06h00, elementos IN/MPLA, atacaram o aquartelamento de Caio Guembo, do Morro do Sul deste e a uma distância de 100/200 metros, utilizando grande potencial de fogos (RPG7, AK47, morteiro 60)*, causando às NT 4 mortos (2 Alferes, um 1º cabo** e um soldado), 3 feridos graves e 10 ligeiros. (1)

O ataque do MPLA a Caio Guembo foi dos acontecimentos mais violentos, vindo a ter interferência na vida militar futura do entrevistado.

Em 30 de Maio de 1974 o MPLA faz um ataque violento ao aquartelamento de Caio Guembo, com destruição de instalações, mortes e feridos, entre eles dois Alferes. O quartel, no que respeita a instalações, estava praticamente destruído, a Companhia ficou muito reduzida de pessoal e foi-lhe exigida a mesma operacionalidade. Põem para lá uma unidade de canhões sem recuo, uma unidade de não sei o quê, puseram para lá montes de unidades. Começou a haver divisão de comando, cada unidade leva o seu comando, torna-se pouco operacional. Nessa altura digo, basta! Comunico ao comando que quero ser ouvido, nas operações conjuntas programadas. (2)

A Comp. 5043 tinha um grupo de combate no Caio Guembo nesse ataque a reforçar, onde eu estive presente debaixo de fogo do IN, tinhamos a Companhia.sediada no Belize. Não chegaram a entrar no quartel, mas fomos atacados a cerca de 100 metros do mesmo, com fogo dirigido mais para onde dormiam os Alferes, eram 4 morreram dois. O Soldado morreu no depósito de material de guerra, que foi a primeira coisa que rebentou. (3)

Fui na coluna que foi ao Quartel buscar os seus caixões Posso dizer que foi das coisas que mais me impressionou, a maneira comovente como aquele quartel se despediu dos seus militares Foi arrepiante. (4)

Listagem dos mortos e feridos:

Mortos

2ª companhia

- Alferes Mil – Alcindo Vicente Neves
- Alferes Mil – António Azevedo Ferreira
** - 1º.Cabo Alfredo Coelho Lima, (mencionado por Fur.Mil.Correia da Silva, 2ª. Cª.Caç./Bat. Caç.4913/73.). Estava omisso nesta listagem do B.C. 4913
- Soldado Atirador – José Manuel da Silva

Feridos


1º sargento Inf. – Joaquim Dias Narciso
Furriel Miliciano – José Flávio de Jesus Almeida
Furriel Miliciano – Francisco José Palminha Azedo
Furriel Miliciano – José Carlos Simões das Neves
1º cabo mec. Auto – Egídio Paulo Correia Andrade

2ª Companhia

1º cabo atirador – Avelino Vieira Cabral
1º cabo escriturário – Manuel Luís Pereira
Soldado atirador – Manuel Jorge do Poço
Soldado atirador – Manuel Alberto Vieira Gonçalves
Soldado atirador – João Ribeiro Teixeira
Soldado Mecânico auto – Luís António Fernandes
Soldado atirador – Faustino Mateus Júnior

(nesta listagem constam 12 feridos e noutros locais consultados mencionam 14. No preâmbulo sobre o ataque, este Batalhão refere 13 feridos e o José Lopes idem)

Fontes consultadas:

* - informação de Correia José

(1) - Batalhão de Caçadores 4913
(2) - António Inácio Correia Nogueira (Tese e Anexos - Universidade Fernando Pessoa) in Capitães do Fim

Depoimentos

(3) - Antero Ferreira
(4) - Evaristo Rosa

Fotos:

- José Lopes

Depoimento de José Lopes - a foto onde eu estou na cadeira, não é no Caio mas sim no B.C.11 quando estávamos à espera de embarque. Foi a nossa única baixa. Foi naquela cadeira que ele (soldado) foi alvejado quando já não previamos nada disto.

O meu muito Obrigado a todos!

23.8.20

A guerra que passei...

Depois do 25 de abril de 1974, o IN intensificou a luta de guerrilha contra as tropas portuguesas destacadas no Enclave de Cabinda.

Saíamos em patrulha contra a vontade dos soldados que não as queriam fazer. A maior parte deles eram naturais desse enclave e queriam sair da tropa para regressarem às aldeias de que eram originários.

Mais uma patrulha ia sair do nosso quartel de Tando-Zinze. Ia eu, o Furriel Franco que comigo tinha vindo dos Comandos e os nossos grupos de combate. A saída era a pé até uma aldeia que distava três dias e noites de caminhada por caminhos quase intransitáveis., devido às fortes chuvadas que caíam e transformavam a picada num terreno de lama e muito mosquito.

Á saída do quartel a rebelião. Só iam se fossem de Unimog que designavamos por 'burros do mato'.

A ordem que tínhamos era a pé e a pé teria que ser.

O meu grupo lá se dispões a ir, mas o grupo do Franco estava irredutível. Eu conhecia bem o Franco, era um dos que mais me dava pois tínhamso sofrido as agruras juntos no 27º Curso de Comandos.

O que não esperava era pela reação dele. Devido ao treino que tínhamos tido nos Comandos, colocou a G3 em posição de rajada e com ela pela cintura, disparou contra os pés dos que se recusavam a fazer a patrulha. Remédio santo. Fizemos a patrulha mas sempre com receio (e não medo) de quando dormissemos em plena floresta do Maiombe fossemos atacados pelos nossos grupos.

A 9 de maio de 1974 no Belize, numa armadilha, morre um Furriel e vários soldados ficaram feridos.

Em Caio Guembo, no dia 30 de maio desse ano, o IN ataca o aquartelamento, provocando a morte de dois Alferes, um Furriel, um soldado, havendo ainda 14 feridos.

E era este o nosso estado de espírito em Cabinda. A qualquer momento podiamos ser atacados como estava previsto ser feito ao nosso quartel em Tando-Zinze.

foto: no nosso 'saloon' em Tando-Zinze:

Em cima : Restollho, eu e ?
Em baixo: Franco e Guedes

19.8.20

Amigos para sempre!

É na prisão e no hospital que se vêm os melhores amigos. Haja o que houver nunca os abandonam.

Mas há um outro sítio que quem como eu lá andou, nunca os esquecemos... É na guerra!

Ali, quando as balas silvam ao nosso redor e vemos um camarada em perigo, tudo se esquece, até o perigo de ser atingido por uma bala e vai-se ajudar esse amigo.
Quantos foram salvos pela ação de quem coloca o peito às balas para os defender.

Felizmente nunca tive um momento destes, mas sabíamos que podíamos contar uns com os outros se essa situação surgisse.

Acabada a guerra militar, seguiu-se uma guerra civil, onde milhares de pessoas foram estropiados e milhares obrigados a fugir levando só a roupa que tinham no corpo e, enfrentando o perigo, foram rumo à África do Sul.

Quem muito fala e lá não esteve, o que dizem resvala na couraça da minha indiferença e como disse um profeta: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem (dizem)».

Este amigo ficou, além do que deixou para trás como muitos de nós, sem as lembranças de uma vida, as fotos.

Para ti amigo Joao Cruz, as fotos que de ti tenho e uma do Joaquim Quelhas, daqueles momentos que passamos em Tando-Zinze e cidade de Cabinda, nos longínquos anos 74/75. Uma delas, já no adeus ao nosso quartel, com os caixotes a serem preparados para a partida.

Uma camaradagem que não acaba e nunca acabará.

Estivemos juntos naquela floresta do Maiombe.


Cabinda oyé!

6.8.20

A Cura

Tando-Zinze - 1974

No corpo começou a aparecer várias chagas com pus. Tudo foi tentado pelos nossos enfermeiros mas não havia melhoras. A roupa estava sempre suja daquele líquido que saía da pele e lhe molhava o camuflado. Curiosamente a maior incidência era nas costas.

Um dia vamos até à aldeia de Tchinguinguili. Um autóctone repara naquelas chagas. Verifica e diz: meu furriel, você ao deitar pega em argila misture com um pouco de vinho branco e passe pelo corpo. Assim fizemos. Enquanto este nosso camarada estava de bruços, passávamos a mistura pelo corpo, o vinho evaporava e a argila ficava. Enfiava uma t-shirt e adormecia assim. Fizemos isto durante uma semana, e as chagas secaram.

Nunca mais teve esse problema.

Aqui está ele, sentado, comigo e um alferes, num quarto em Cabinda que alugamos depois de termos saído de Tando-Zinze em dezembro de 1974, o furriel Cruz.

2.8.20

Maiombe - o Paraíso na terra

Em Cabinda, o 'Bar Girassol' era ponto de encontro de todos nós. Perto, o mar. A areia era 'negra' devido às fortes correntes marítimas vindas do sul que arrastam o aluvião da foz do Rio Zaire. Ao largo, as plataformas bombeavam o 'ouro negro' que saía das profundezas do oceano.

O calor da noite era propício ao calor dos corpos e, naquelas areias, muito amor se fez ao som das ondas que, mansamente, beijavam a areia com doçura.

Cabinda era uma cidade pequena mas muito arejada. Não faltavam lá recantos, onde a tropa se 'perdia' em noites de bebedeiras e prazer. Onde há tropa, há sempre um séquito de meretrizes que os acompanham, já no tempo do Imperio Romano assim era.

As noites quentes e húmidas, eram compensadas com o barulho das ventoinhas que traziam um pouco de fresco ao corpo que dormindo como tinha nascido, o suor escorria. De manhã acordava-se e não se sabia como, com o lençol até ao pescoço.

Depois do MVL (Movimento Viaturas Logístico) que fazia o abastecimento ao quartel, era o regresso à floresta do Maiombe.

A beleza luxuriante daquela floresta era de cortar a respiração. O seu despertar com a névoa subindo aos primeiros raios de sol, criava um misto de admiração e surpresa, como o cosmos tinha feito do 'Caos' o que de mais de belo o nosso planeta tem, as suas florestas. Ouviam-se os primeiros pássaros no despertar daquele imenso 'mar' vegetal.

No rio que percorria a aldeia, embora fossem as mulheres que mais ali trabalhavam nas pequenas roças que tinham, velhos pescadores tentavam pescar. Tudo era feito nas calmas, no silêncio dos dias, onde o astro-rei é que mandava no tempo.

A floresta era palco de muitos animais exóticos, o papagaio era rei e senhor dos ares.

As suas águas cristalinas, os recantos onde as belas cabindas se banhavam em cascatas com reflexos do sol, os seus risos cristalinos, o debruçar da vegetação sobre as suas margens, tornavam todo aquele cenário um local idílico, onde o rio, a floresta e as suas gentes, faziam daquele lugar o último paraíso da terra.

foto:: quadro da pintora Josefa Moura intitulado 'Cabinda'